A limitação dos Registros Civis na comprovação da Autodeclaração Racial

As políticas de cotas raciais nos concursos públicos do Brasil, estabelecidas pela Lei Federal nº 12.990 de 2014, reservam 20% das vagas para pessoas negras (pretos e pardos). Essa medida visa mitigar o impacto do racismo estrutural, assegurando acesso e representatividade a grupos historicamente marginalizados. No cerne dessa política, encontram-se as bancas de heteroidentificação racial, essenciais para a aplicação efetiva e justa das cotas. Nas seleções de concursos públicos e vestibulares, as bancas de heteroidentificação são frequentemente contestadas pela tese que defende a utilização dos registros civis como prova da condição racial do candidato.

O Supremo Tribunal Federal (STF), através da ADI nº 4.983 e da ADPF nº 186, validou a constitucionalidade da banca de heteroidentificação, reconhecendo sua importância como complemento à autodeclaração para evitar fraudes e assegurar a eficácia das ações afirmativas.

Essa decisão ressalta a necessidade de mecanismos de verificação, semelhantes aos utilizados em outras políticas públicas tais como, Bolsa Família e a Aposentadoria Rural, mitigados pelo INSS no sentido de garantir que essas políticas assistenciais sejam destinadas aos verdadeiros destinatários.
Para os defensores que advogam que a autodeclaração racial do candidato goza de presunção “absoluta” de veracidade, a Instrução Normativa nº 23 de 2023 do MGI, em seu Art. 5º § 2º, esclarece que a presunção de veracidade é “relativa” e prevalecerá em caso de dúvida razoável sobre seu fenótipo, conforme parecer da comissão de heteroidentificação.

No Brasil, há diversas políticas públicas que utilizam sistemas de verificação para garantir que os verdadeiros destinatários sejam alcançados. Vejamos, a política assistencial do Bolsa Família que utiliza de verificação cadastral, por meio de entrevista e consulta a documentação dos membros do grupo familiar com objetivo de verificar se a renda per capita da família está dentro dos limites definidos pelo programa.

Da mesma forma, a previdência, que por meio do mecanismo de verificação de prova de vida para aposentados, constitui outro sistema de checagem que garante que os recursos previdenciários sejam usufruídos pelos reais destinatários. Seguindo o mesmo arcabouço, aplicada-se aposentadoria por invalidez, espécie de benefício previdenciário destinado aos trabalhadores que por sua vez necessitam cumprir uma série de requisitos para usufruir desse dessa política.

Esses exemplos dialogam com o sistema de verificação da heteroidentificação racial que se estabelece enquanto mecanismo de garantia de efetividade da política de cotas. Sem ela, assim como todas as políticas aqui citadas, as políticas públicas correm um sério risco de perderem sua efetividade, sujeitas às fraudes e distorções administrativas.

Em consonância com os argumentos trazidos, as divergências que surgem do resultado das avaliações das bancas de heteroidentificação resultam em recursos administrativos e em ações judiciais. Nessa quadra, os registros civis (certidões de nascimento, casamento, registros de filhos, matrícula em escolas e universidades) são utilizados demasiadamente enquanto “prova” da condição etnico racial de negro/preto/pardo do candidato.

Candidatos eliminados na fase de heteroidentificação alegam sua condição de “pardos”, que sofrem os efeitos do racismo, em razão dos registros civis atestarem essa condição. Aqui, recordo as palavras do renomado jurista Lênio Streck, que nos ensina sobre a complexidade da interpretação do direito: “De algum modo se perceberá que aquilo que está escrito nos Códigos não cobre a realidade. Como então, controlar a interpretação do direito para que essa obra não seja destruída, e ao mesmo tempo, excluir da interpretação do direito os elementos metafísicos indesejados pelo positivismo jurídico?”

Aplicando a reflexão de Streck ao nosso contexto, fica evidente que a simples menção de enquadramento a condição de negro/preto/pardo aos registros civis não supera a avaliação sociológica da heteroidentificação racial, que vai além da esfera documental. A identidade racial não se limita a uma entrada em um documento, mas se manifesta em experiências vividas, na interação social e na percepção coletiva.

Assim, a heteroidentificação racial se faz necessária como um instrumento adicional de verificação. Ela não só promove a igualdade racial ao identificar corretamente os candidatos afetados pelo racismo, mas também previne fraudes ao sistema de cotas e, consequentemente, desvio de finalidade da política pública. Esse processo, portanto, não só respeita a realidade sociológica das identidades raciais, mas também se alinha com os princípios da justiça e equidade, fundamentais em uma sociedade democrática.

Jorge X
@jorgexxis
https://www.jorgex.net
Tel: (71) 99414-4444

Jorge Vieira é Consultor da Empresa Recursos Heteroidentificação e ativista do Movimento Negro. Possui pós-graduação em Direito Processual Civil e atua como membro de bancas de heteroidentificação racial na Defensoria Pública da União, Universidade Federal da Bahia e no Conselho Federal de Psicologia. Com vasta experiência em política de cotas raciais, Jorge conhece os procedimentos que estruturam as regras seguidas pelas bancas de heteroidentificação e pelas organizadoras de concursos públicos, podendo ajudar pessoas como você que tiveram o resultado da heteroidentificação injustamente indeferido.

 

FONTES

STF

TJ/DFT:

TJ/BA:

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