Após o brutal assassinato de George Floyd pela polícia norte americana, uma onda de protestos iniciada nos Estados Unidos tomou uma forma particular que gerou intensos debates em todo o mundo: a derrubada de estátuas de personagens históricos ligados direta ou indiretamente a processos de escravização e de colonização.
Nesse mesmo país, por exemplo, manifestantes derrubaram e deceparam estátuas de Cristóvão Colombo, sob o argumento de se tratar de um apoiador do genocídio indígena e da escravidão. Do outro lado do atlântico, na Inglaterra, antiga potência escravocrata, a estátua do traficante de escravos Edward Colston, foi derrubara e atirada em um rio.
Para a história, nada disso é novidade. Há vários exemplos de fatos semelhantes, como as retiradas recentes das estátuas do ex-presidente norte americano Theodore Roosevelt na entrada do museu de Novas York. Assim como a estátua do ex-presidente do Iraque Saddam Hussein. Há centenas de anos construímos e destruímos marcos de memória. Estátuas e outras formas de homenagens a personagens existem para nos trazer a memória de um tempo, para transformar homens em ideias.
O Historiador Leandro Karnal diz que a memória está associada ao poder, refletindo as relações de determinada época. Já o advogado e professor Silvio Almeida, ao defender a derrubada de estátuas de defensores da escravidão presentes no sul dos Estados Unidos, diz que esses marcos foram construídos para “deixar registrada a memória” da supremacia branca e da escravidão.
E por estar associada ao poder, a memória está em permanente disputa. Especialmente nos dias atuais, marcados pela ascensão do fascismo e do culto à ignorância, podemos citar dois exemplos de ataques de cunho fascista: a destruição da placa de rua em homenagem a vereadora Marielle Franco no Rio de Janeiro, que foi brutalmente assassinada por milicianos ligados à família do presidente do Brasil e a derrubada da estátua de Frederick Douglas em Nova York, um dos abolicionistas e ativistas mais importantes da história do Estados Unidos.
Nessa disputa, para onde vai a memória? A solução para nossos problemas históricos estaria em fazer, como diz Karnal, “terra arrasada da memória”? Sairemos mais fortes destruindo esses marcos de memória?
É nesse contexto que o deputado Hilton Coelho (PSOL) propõe uma solução à altura daqueles homens públicos que encarnam as necessidades de seu tempo. Uma solução tipicamente brasileira, refletida, que leva em conta as caracterizas particulares do Brasil.
Não seria efetivo para nosso crescimento como sociedade marcada por uma história de mais de trezentos anos de escravidão, que até hoje se reflete em desigualdades sociais profundas e no racismo estrutural, sair a derrubar estátuas. Assim, o deputado dispõe, por meio de um Projeto de Lei nº 23.928/2020, já pautado no plenário da Assembleia Legislativa da Bahia, uma solução muito mais construtiva não só para o povo da Roma Negra, como diz Caetano Veloso, mas para todo o povo brasileiro, que é a construção do museu da História da Escravidão e Invenção da Liberdade.
O projeto também estabelece a eleição de uma comissão plural para identificar escravocratas e genocidas que estão homenageados nas ruas das cidades da Bahia. Uma vez identificados, a comissão verificará os personagens mais ofensivos à memória do povo baiano e os colocará no museu, que também terá espaço para intervenções artísticas relacionadas à temática da escravidão. No museu, placas com explicações históricas de inequívoco rigor científico, acompanharão cada personagem. Não se trata de querer apagar a história, ao contrário, trata-se de iluminá-la.
Fundamental para a memória do Brasil, é muito significativo que o museu da História da Escravidão e Invenção da Liberdade seja construído na primeira capital do país, na cidade mais negra fora da África, no caldeirão cultural que é Salvador. O objetivo é manter vivo na memória brasileira e mundial as mazelas da escravidão e seu legado, e também destacar as potências que a cultura africana legou ao Brasil. Em momentos de obscurantismo e escuridão, a memória serve como um farol a guiar o mundo para um caminho de justiça e liberdade.
Jorge X, é ativista do movimento negro da cidade de Salvador – BA.