Reflexões soteropolitanas sobre a sociedade pós-Covid-19

Por Jorge X

Como construiremos uma suposta nova sociedade, pós-coronavírus, sobre pilares de uma realidade tão desigual? As medidas adotadas contra a COVID-19 revelaram-se ineficientes para grupos historicamente excluídos: população negra e os povos indígenas.

As desigualdades sociais ficaram ainda mais evidentes diante das propostas de enfrentamento à pandemia. Moradia precária, que não possibilita o distanciamento necessário para o isolamento social; exclusão tecnológica, bancária; e ausência de reserva financeira são algumas condicionantes que determinam a forma como esses grupos respondem às determinações para o isolamento.

Confesso que fiz coro para a campanha “#fiqueemcasa”. Porém, hoje, pondero e acrescento a frase, “se puder”, pois, se o vírus é aparentemente democrático no contágio, a proteção contra ele é profundamente desigual.

Constatamos essas desigualdades nas tentativas de proteção contra a proliferação do vírus. Com efeito, como construiremos uma nova sociedade, pós-coronavírus, se 70% da população de Salvador vivem em aglomerados urbanos, muitos sem saneamento básico? A comunidade do Bate Facho, bairro da Boca do Rio em Salvador, é um emblema dessa falta de infraestrutura. As pessoas não conseguem cumprir as medidas de isolamento por causa dos frequentes alagamentos que atingem essa localidade.

Novo Normal, Sociedade Pós-COVID-19 são algumas tentativas conceituais que propõem um novo padrão de vida em comunidade que possa garantir a sobrevivência de todos. Visa discutir o modelo de organização social que surgirá após a pandemia. Contudo, a renovação de uma realidade social para outra mais fraterna depende de uma percepção que traga, ao centro do debate, os problemas que a estruturam.

Passa, por isso, pela discussão sobre o modelo atual de sociedade e a construção de um outro formato que, verdadeiramente, contemplem toda a coletividade. Que o individualismo, o trabalho infantil, a condição dos moradores em situação de rua, o racismo e a violência contra a mulher, dentre outros problemas sociais, sejam superados.

De que maneira construiremos uma nova sociedade pós-coronavírus se estudantes das escolas públicas não possuem acesso a equipamentos de comunicação nem internet banda larga para se prepararem para o ENEM? De que modo construiremos uma nova sociedade pós-coronavírus se as pessoas não conseguem criar reservas financeiras frente à exclusão do sistema financeiro e extorsão bancária?

Um ponto que chama atenção na discussão sobre as possíveis saídas para esta crise é a repetição de padrão que a sociedade brasileira, mais uma vez, apresenta para debater as grandes questões inerentes a ela. Explico: desde a colonização, a população negra e os povos indígenas nunca estiveram em condições de igualdade de representação política para discutir e construir alternativas para o desenvolvimento da nação. Restando-lhes apenas as revoltas populares como tentativa de propor outras visões de sociedade.

Hoje, presenciamos o mesmo fenômeno de exclusão de narrativas, ausência de representatividade negra e indígena para pensar os rumos da nação. Evidenciamos isso nos grandes debates sobre reconstrução de sociedade pós-coronavírus; por meio de entrevistas e “lives”, flagramos a ausência desses atores. Desse modo, as discussões sobre a construção de uma sociedade pós-pandemia não podem prescindir dessas perspectivas.

Assim, respondendo à questão que orienta a construção deste texto, a presença da diversidade sociorracial na participação das discussões sobre uma nova coletividade, apresenta-se como um dos caminhos que possibilite um ambiente mais rico e capaz de contribuir para a construção de uma nova sociedade.

Também é necessário um grande investimento em políticas públicas de promoção da igualdade que possam mudar as condições históricas de desigualdades. Acreditamos que só assim o “novo normal” poderá construir uma sociedade solidária, mais integrada com a capacidade de pensar o futuro em conjunto, e não individualmente.

Guy Ryder, diretor-geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), diz que “Agora é a hora de olhar mais de perto esse novo normal e começar a tarefa de torná-lo um normal melhor, não tanto para aqueles que já têm muito, mas para aqueles que obviamente têm muito pouco”

Por todos esses aspectos, é imprescindível que todos se conscientizem de que a construção de um novo corpo social seja erguido integralmente por todas as pessoas. Para que assim, agrege-se outros modelos e valores sociais como o Sankofa, um provérbio africano, que significa retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro. E por fim, que tudo isso sirva de caminhos para a construção de uma nova sociedade.

5 pensou em “Reflexões soteropolitanas sobre a sociedade pós-Covid-19

  1. Parabéns, Jorge!
    É preciso enfrentar e erradicar o racismo de todas as formas, com clareza, firmeza e compromisso. Uma dívida histórica que não dá mais pra esconder debaixo do tapete já ensopado de sangue. Seguimos nessa luta coletiva!

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